segunda-feira, 21 de março de 2011

O Princípio do dano

A tese principal defendida por Mill em Sobre a Liberdade é fácil de explicar, em traços gerais. Segundo Mill, toda a interferência (quer por parte do Estado, quer por parte de outros indivíduos) em assuntos que só dizem respeito ao próprio indivíduo (ou, como Mill por vezes lhes chama, self-regarding matters) é ilegítima e o ónus da prova estará, por isso, sempre do lado de quem quiser interferir em assuntos que só digam respeito ao próprio indivíduo (mesmo que se tenha em vista o seu bem). Outro modo de expressar a mesma ideia é dizer que só é legítimo interferir em assuntos que só ao próprio dizem respeito, sem a sua concordância expressa, por razões de autoprotecção - sendo esta a mais conhecida formulação daquele que ficou conhe­cido como «o princípio do dano».
É necessário fornecer alguns pormenores em relação à noção de assuntos que só ao próprio dizem respeito e em relação ao que constitui interferência. Os assuntos que só ao próprio dizem respeito são, por excelência, os que dizem respeito aos sentimen­tos e opiniões das pessoas, aos seus gostos e objectivos na vida, e à associação volun­tária de pessoas - que sejam maiores de idade e estejam em plena posse das suas fa­culdades mentais - para objectivos que não impliquem dano a outros. Interferir é forçar efectivamente uma pessoa a fazer algo contra a sua vontade; críticas e tentativas de persuadir ou exortar a pessoa a agir de outro modo não constituem geralmente inter­ferências (mas veremos mais abaixo um caso em que podem constituir interferências).
Mill aceita algumas excepções ao princípio do dano. Segundo Mill é legítimo in­terferir contra a vontade das pessoas caso estejamos a lidar com criaas, pessoas que não estejam em plena posse das faculdades mentais comuns (deficientes mentais, pessoas sob a influência de álcool ou drogas, etc.) ou sociedades bárbaras; caso seja necessário impor a realização de deveres sociais, como o dever de defender o país em caso de ataque; ou caso o indivíduo em questão não conheça algum facto que, caso o conhecesse, o levaria provavelmente a agir de outro modo. Para ilustrar este último caso, Mill dá o exemplo de uma pessoa que está numa ponte em risco de ruir - se não houver tempo para avisar a pessoa desse facto, é legítimo afastá-la da ponte, recorrendo à força, se necessário (mas se a pessoa estivesse ciente desse risco, e nós soubéssemos disso, seria ilegítimo afastá-la da ponte).
Deve-se avaliar com alguma cautela os comentários de Mill no primeiro capítulo sobre a legitimidade de exercer despoticamente o poder sobre sociedades bárbaras. O simples facto de uma sociedade ser retrógrada não significa que, segundo Mill, tenhamos o direi­to de interferir nela. Mill dá, no final do quarto capítulo, o exemplo da comunidade mór­mon, que considera retrógrada por permitir a poligamia, e afirma que não nos é permi­tido interferir, dado que tal sucede com a vontade expressa de todos os envolvidos. Só seria permitido interferir se a comunidade impedisse os membros insatisfeitos de se irem embora. Isto parece indicar que Mill consideraria que qualquer interferência nos assun­tos internos de um país seria legítima caso se tratasse de um regime totalitário (pois estes regimes procuram impedir as pessoas de sair do país). Dizer que uma interferência seria legítima, porém, não é a mesma coisa que dizer que seria boa ideia fazê-lo; é preciso não esquecer que Mill é um utilitarista, e que provavelmente se oporia a qualquer interferên­cia externa para derrubar um regime totalitário caso essa interferência não maximizasse a utilidade.
Pedro Madeira
Mill, J. S. (2010). Sobre a Liberdade. Lisboa: Público.

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