quinta-feira, 24 de março de 2011

"Os partidos"

Escrevia E. Burke em 1756

Resulta daqui que, embora se devam despachar os assuntos do Estado, se discute sobre qual dos partidos tem o direito de exercer esta ou aquela função, ou sobre que homens têm poder para manter os seus cargos em cada uma das funções do governo. Enquanto dura esta disputa, e continuam a os­cilar as várias funções, não existe qualquer perdão: toda a espécie de abusos e de infâmias dos ministros permanecem impunes, as maiores fraudes e roubos ao erário público são cometidas a despeito da justiça; e os abusos, com o tempo e com a impunidade, transformam-se em costumes, até que se fixam contra as próprias leis, e se tornam demasiado ar­reigados para admitir qualquer remédio, a menos que seja tão mau como a doença.
Em terceiro lugar, as várias partes deste tipo de gverno, ainda que unidas, conservam cada uma o espírito que possuíam separadamente[1]. Os reis são ambiciosos, os nobres arrogantes, e a populaça tumultuosa e ingoverná­vel. Cada partido, na aparência pacífico, transporta um plano de oposição aos outros, e é devido a isto que em to­das as questões, no que concerne quer a assuntos externos quer a assuntos internos, a discussão diz mais respeito aos interesses de cada uma das partes do que à natureza do próprio problema; discute-se se um certo passo aumentará ou diminuirá o poder da Coroa, ou se os privilégios dos súbditos serão alargados ou restringidos por causa dele. E as queses resolvem-se sempre sem ter em conta os mé­ritos de uma certa solução, mas somente em refencia a quanto poderão ganhar os interesses díspares dos partidos que a sustentam; e conforme aqueles que prevalecem, o balanço do poder pende ora para um lado, ora para o ou­tro. Um dia o governo apresenta-se como poder arbitrário de uma só pessoa, no outro dia como uma camarilha de poucos que enganam o soberano e escravizam o povo, um terceiro dia como uma democracia agitada e insubmissa. O grande artífice de todas estas mudanças, e que infunde nelas um veneno peculiar, é o partido. Não conta quais são os princípios de cada um dos partidos, ou que fins visam atingir; o espírito que anima todos os partidos é o mesmo: é o espírito da ambição, do interesse pessoal, da opressão e da traição. Este espírito destrói inteiramente todos os sãos princípios que uma natureza benévola teria posto em nós: a honestidade, a equidade, a justiça, e mesmo os afectos naturais que são os vínculos da sociedade natural. Numa palavra, Senhor, nós todos vimos, e alguns de nós, se é lícito chamar a atenção de um homem sábio considerações do género, sentiram os efeitos de uma tal opressão do partido no governo como não existe paralelo em nenhuma outra tirania. Observámos diariamente os direitos fundamentais, dos quais dependem todos os outros, reduzidos ao míni­mo, sem sequer a preocupação de salvar a aparência ou a mínima sombra de justiça. Observámos isso sem nenhuma comoção, porque crescemos no meio do espectáculo cons­tante de tais práticas, e não nos surpreendemos se se pedir a um homem para se tornar um velhaco e um traidor com a mesma frieza como se lhe fosse solicitado o favor mais banal, nem se esse homem recusar o pedido, não por este constituir um desejo injusto e despropositado, mas porque esta personalidade ilustre já prometeu a outros os seus iní­quos serviços.

Burke. (2008). Defesa da sociedade natural. Lisboa: Círculo de Leitores.


[1] Refere-se à análise que fez dos regimes políticos: despotismo, oligarquia e democracia.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Livres ou Felizes?

 De um filósofo actual (sublinhados nossos)

Livres ou Felizes?

Quero ser franco contigo: viver numa sociedade livre e democrática é uma coisa muito, mas mesmo muito, complicada. No fundo, os gran­des totalitarismos do nosso século (comunismo, fascismo, nazismo e ou­tros que apareçam, se é que ainda não estão todos) são tentativas de sim­plificar por meio da força a complexidade das sociedades modernas: são enormes simplificações, simplificações criminosas que tentam regressar a uma ou outra forma de beatífica ordem hierárquica primordial, nos ter­mos da qual cada um estava no seu lugar e todos pertenciam à Terra Mãe ou ao Grande Todo Comum. O inimigo é sempre o mesmo: o indivíduo, egoísta e desenraizado, caprichoso, que se desprende da acolhedora uni­dade social (ou seja, daquilo a que um pensador bastante cruel, Friedrich Nietzsche, chamava «o calor do estábulo") e assume liberdades exces­sivas por sua conta própria. Os totalitarismos troçam sempre das liber­dades «formais ou burguesas» em vigor nos regimes mais abertos: ridi­cularizam-nas, demonstram a sua inoperância, consideram-nas simples enganos para tolos ... mas assim que podem acabam com elas! Sabem que apesar da sua aparente fragilidade e da sua frequente ineficácia, o unanimismo totalitário não pode coexistir com as liberdades políticas elementares: se as tolerar, elas, a prazo, põem fim à autoridade de tan­ques e polícias.
Bom, é lógico que os Estados totalitários pretendam esmagar as li­berdades individuais, uma vez que o próprio nome que os designa de­riva da palavra «todo», e por isso esses Estados não aceitam a ideia de partilharem o poder com cada um dos seus cidadãos. Mas os inimigos da liberdade nem sempre estão no exterior, por vezes é dentro dos pró­prios indivíduos que os encontramos. Um psicanalista com ambições de sociólogo, Erich Fromm, escreveu há quase meio século um livro inte­ressantíssimo cujo título é já significativo: O Medo à Liberdade. É esse o problema:'O cidadão assusta-se com a sua liberdade, com a variedade de opções e de tentações que se desdobram diante de si, com os erros que pode cometer e com as barbaridades que pode chegar a praticar... se quiser. -se como que a boiar num mar de dúvidas local, sem pontos de referência fixos, obrigado a escolher pessoalmente os seus valores, submetido ao esforço de examinar por si próprio o que é preciso fazer, sem que a tradição, os deuses ou a sabedoria dos chefes possa aliviar grandemente a sua tarefa. Mas, acima de tudo, o cidadão tem medo da liberdade dos outros. O sistema das liberdades caracteriza-se pelo facto de uma pessoa nunca poder estar completamente segura quanto ao que vai acontecer. A liberdade dos outros, eu sinto-a como ameaça, porque preferiria que eles fossem perfeitamente previsíveis, que se parecessem obrigatoriamente comigo e jamais pudessem agir contra os meus inte­resses. Se os outros forem livres, é evidente que poderão comportar-se melhor ou pior. Não seria preferível que tivessem que ser bons à força? Não correrei demasiados riscos permitindo a liberdade deles? Muitas pessoas renunciariam de bom grado à sua própria liberdade contanto que os outros também não gozassem dela: assim as coisas seriam a todo o momento como devem ser - e mais nada. A minha liberdade é peri­gosa, porque posso utilizá-la mal e prejudicar-me a mim mesmo; quanto à dos outros nem vale a pena falar, uma vez que podem usá-la para me fazerem mal a mim. Não será melhor pôr fim a tantas incertezas? Não penses que são sempre os governantes que querem acabar com as liber­dades ou castrá-las ao máximo: muitíssimas vezes são os cidadãos que solicitam a repressão, cansados de ser livres ou receosos da liberdade. Mas a verdade é que quando concedemos a um Estado a oportunidade de limitar as liberdades «para nosso bem», só raramente o Estado deixa de agarrar a ocasião. Certos políticos totalitários, como Adolf Hitler, che­garam ao poder por meio de eleições: como vês, isso significa que já aconteceu os cidadãos livres utilizarem a sua liberdade para acabarem com as liberdades e empregarem a maioria democrática para abolirem a democracia.
As liberdades públicas implicam responsabilidade: trata-se de uma noção a que já atribuímos a devida importância na Ética para Um Jo­vem, como espero que ainda tenhas presente. Ser responsável é ser-se capaz de responder pelo que se faz, assumindo-o como um acto próprio, e uma tal resposta tem pelo menos dois aspectos importantes. Primeiro, significa responder «fui eu» quando os outros querem saber quem levou a cabo as acções que foram a causa mais directa destes ou daqueles efei­tos (maus, bons, ou maus e bons ao mesmo tempo); segundo, sermos ca­pazes de dar as nossas razões quando nos perguntam porque fizemos es­tas ou aquelas acções relevantes. «Responder», não era preciso lembrar­-to, é qualquer coisa que tem a ver com «falar», com entrar em comu­nicação articulada com os outros. Numa democracia, a verdade das ac­ções com repercussão pública não pode ser exclusivamente detida pelo agente que as leva a cabo, mas abre-se a esse respeito um debate mais ou menos polémico com os restantes associados. Embora possamos acre­ditar na bondade das razões que nos movem, devemos dispor-nos a ovir as dos outros sem nos fecharmos obstinadamente nas nossas, pois o contrário só poderá levar ou à tragédia ou à loucura. Dom Quixote con­sidera-se a si próprio um cavaleiro andante, mas é óbvio que deveria ovir de vez em quando a opinião dos que o rodeiam e medir o impacte so­cial das suas discutíveis «façanhas». Se não o faz é porque está louco, ou seja, porque se tornou irresponsável. Contudo, assumirmos os nos­sos próprios actos e sermos capazes de os justificar perante os outros não implica que renunciemos sempre à nossa opinião para nos vergarmos perante o parecer da maioria. A pessoa responsável tem que estar tam­bém pronta a aceitar, depois de expor as suas razões sem ter conseguido convencer os restantes associados, o preço de reprovação ou marginali­zação da sua discordância. As palavras de Sócrates no diálogo platónico Críton, quando se nega a fugir da cadeia e prefere enfrentar a condena­ção à morte sem abdicar das suas ideias, constituem o símbolo clássico desta atitude de maturidade vica suprema.
Os irresponsáveis podem ser de muitos tipos. Há aqueles que não re­conhecem a autoria do que fizeram: «não fui eu, foram as circunstân­cias». Nunca fizeram nada, mas foram empurrados pelo sistema político e económico vigente, pela propaganda, pelo exemplo dos outros pela educação que lhes foi dada ou pela falta dela, por uma infância infeliz, por uma infância demasiado mimada, pelas ordens dos superiores, pelo costume estabelecido, por uma paio irresistível, pelo acaso, etc. E tam­bém pela ignorância: como não sabia que seriam estes os resultados da minha aão, não me considero responvel por eles. Nota que eu não digo que para compreendermos cabalmente as acções de uma pessoa não devamos ter em conta os seus antecedentes, as circunstâncias, etc. Mas uma coisa é termos isso em conta, outra é convertê-lo numa série de fatalidades que anulam qualquer possibilidade de um indivíduo dever responder pelos seus actos. Naturalmente, esta recusa por parte do indi­víduo da condição de «sujeito», que o transforma em mero objecto arrastado pelas circunstâncias, só costuma verificar-se quando as con­sequências do acto que os outros lhe imputam são pouco agradáveis; se, pelo contrário, nos pusermos à procura do responsável por certas acções para lhe darmos um prémio ou uma medalha, o objecto da nossa busca proclamará «fui eu» com o maior dos orgulhos. É pouco frequente ovirmos alguém dizer que não foi a sua pessoa mas apenas as circuns­tâncias ou o acaso que fizeram o acto heico ou a genial invenção que os outros lhe atribuem...
Outra forma de irresponsabilidade é o fanatismo. O fanático recusa­-se a qualquer tipo de explicações: prega a sua verdade sem condescen­der com mais argumentos. Como é ele quem incarna indubitavelmente o caminho recto, os que discutem a sua verdade só podem fazê-lo mo­vidos por baixas paixões ou sujos interesses, cegos talvez por algum demónio que os não deixa ver a luz. O fanático também se não tem por responsável diante dos seus concidadãos, mas apenas perante uma ins­tância superior e, à partida, inverificável (Deus, a História, o Povo ou qualquer outro termo maiusculado que tal): as cautelas e leis habituais não foram feitas para gente como ele, que tem uma missão transcendente a cumprir... Geralmente menos terrorista, mas em contrapartida muito mais extensa é a irresponsabilidade a que poderíamos chamar burocrá­tica. É característica das instituições administrativas e governamentais em que nunca ninguém dá a cara por seja o que for que se faça ou não se faça: a coisa compete sempre a outro, o papel veio do gabinete lá de cima, isto muda-se naquilo também negociado, foram os superiores que decidiram (mas nunca se sabe que superiores) ou os subordinados que perceberam mal (é verdade que de vez em quando lá rola a cabeça de al­guma insignificância, mas sempre para impedir que se procurem as verdadeiras responsabilidades mais alto). O estilo da irresponsabilidade burocrática caracteriza-se pelo facto de quase nunca ninguém se demitir aconteça o que acontecer: nem por causa da corrupção política, nem por causa da incompetência ministerial, nem por causa dos erros cras­sos que os cidadãos têm que pagar do seu bolso, nem por causa da ine­ficácia manifesta quando se trata de acabar com os males cuja remoção fora prometida. Como o governante se considera irresponsável, tenta que a trama das instituições o ajude a gozar de impunidade. Toda a denúcia de abusos, por fundamentada que seja, parece fazer parte de uma campanha mavola dos adversários políticos; quanto à indignação dos cidadãos comuns, expressa através dos meios de comunicação, aplica­-se-lhe o velho princípio segundo o qual «os cães ladram e a caravana passa... ». Este modelo de irresponsabilidade governativa tem o seu com­plemento na irresponsabilidade dos que consideram não ter que respon­der por coisa nenhuma pois é o governo que deve resolver tudo. Eis uma vez mais a mentalidade totalitária, que torna o Estado e os seus repre­sentantes um absoluto fora do qual só existe impotência! Na sociedade democrática, nós, cidadãos, podemos e devemos reivindicar o nosso di­reito (pressupondo este último, em certa medida, a nossa obrigação) de intervir, de colaborar, de vigiar, de auxiliar quando isso nos pareça ne­cessário. Há pessoas que em vez de lamentarem que os imigrantes não conheçam o nosso idioma se oferecem voluntariamente para o ensinar aos estrangeiros, sacrificando algumas horas de ócio; outras cooperam com o seu esforço ou o seu dinheiro com movimentos sociais (educati­vos, anti-racistas, assistenciais, etc.) ou com instituições não-governa­mentais - como a Amnistia Internacional, as associações de direitos humanos ou os Médicos sem Fonteiras - cuja acção é imprescindível para melhorarmos a actual sociedade civil. Quem nunca se sente solici­tado, na sua consciência democrática, a fazer o que acredita que deve ser feito não fica quite com o seu dever por lamentar com eloquência que também «os governos» não o façam. Mas sem tirar sombra de im­portância à responsabilidade individual, é justo reconhecermos a nossa co-responsabilidade social no não-impedimento de situações próximas de nós que verosimilmente acabarão em crimes ou desastres.
Sejamos claros: os irresponsáveis são inimigos viscerais da liberdade, tenham ou não consciência disso. Todo aquele que não assume resposabilidades o que rejeita, no fundo, são as liberdades públicas, ininteli­gíveis se as desvinculamos da obrigação que cada um de nós tem de responder por si próprio. A liberdade é autocontrolo: ou andamos com um polícia, um médico, um psicólogo, um mestre-escola e até mesmo um padre ao lado para eles nos dizerem o que devemos fazer em cada caso que se nos apresente ou assumimos as nossas decisões, sendo ca­pazes de dar a cara pelas consequências delas, para o bem como para o mal. Porque sermos livres implica que nos enganemos e até que nos pre­judiquemos ao usar a liberdade: se nunca nos pudesse acontecer nada de mau ou de desagradável pelo facto de sermos livres... não o seríamos. Bem vistas as coisas, as Luzes políticas que, a meados do século XVIII, deram origem à democracia moderna pressupõem - como no seu tempo indicava já o velho Immanuel Kant - que nós, seres humanos, saímos da menoridade política. Se somos adultos podemos organizar-nos como iguais perante a lei e ser livres; caso contrário, precisamos de um Super­-Paizinho que nos defenda de nós próprios, quer dizer, que restrinja, oriente e administre a nossa capacidade de agirmos livremente. É evi­dente que o lugar de Super-Paizinho tem um candidato que se apresenta voluntariamente e conta com todas as vazas para a conquista do título: já deves ter adivinhado que estou a referir-me ao Estado. A mania bu­rocrática de transformar o Estado em nosso pai em vez de fazermos dele o nosso conselho de administração (mania sustentada por todos os que olham para o Estado de maneira timorata, mimada e infantil, em vez de adulta e participativa) chama-se em termos correntes paternalismo. E tem um sucesso que nem imaginas!
Há dois tipos de irresponsáveis infantilóides: os que têm medo dos outros e os que têm medo de si próprios. Nos dois casos, a consequência final é a mesma: quantas mais proibições, mais seguros e contentes. Como os irresponsáveis de que estamos a falar consideram que o Estado é o seu Grande Pai, rezam-lhe à sua maneira pedindo: «não nos deixes cair em tentação». Porque todos os irresponsáveis, em vez de acreditarem na liberdade (que é uma coisa bonita mas muito comprometida), acre­ditam no mito da tentação irresistível. Quer dizer, acreditam que há cer­tas imagens, ou palavras, ou substâncias, ou conspirações, ou seja lá o que for, que nos seduzem de modo tão automático e envolvente que frente a elas não há defesa que se aguente pois o seu efeito é aniquilar em nós qualquer capacidade de decio. Vamos , como diria o outro: um homem não é de pau ... Assim, a única salvação é aparecer o paizi­nho Estado para proibir a tentação: quando deixa de haver tentação, deixa também de haver perigo, pensam os pobres tolos. Podes crer que são espíritos infantis os que assim raciocinam. 
 
Savater, F. (1993). Política para um Jovem. Lisboa: Editorial Presença.