De um filósofo actual (sublinhados nossos)
Livres ou Felizes?
Quero ser franco contigo: viver numa sociedade livre e democrática é uma coisa muito, mas mesmo muito, complicada. No fundo, os grandes totalitarismos do nosso século (comunismo, fascismo, nazismo e outros que apareçam, se é que ainda não estão todos) são tentativas de simplificar por meio da força a complexidade das sociedades modernas: são enormes simplificações, simplificações criminosas que tentam regressar a uma ou outra forma de beatífica ordem hierárquica primordial, nos termos da qual cada um estava no seu lugar e todos pertenciam à Terra Mãe ou ao Grande Todo Comum. O inimigo é sempre o mesmo: o indivíduo, egoísta e desenraizado, caprichoso, que se desprende da acolhedora unidade social (ou seja, daquilo a que um pensador bastante cruel, Friedrich Nietzsche, chamava «o calor do estábulo") e assume liberdades excessivas por sua conta própria. Os totalitarismos troçam sempre das liberdades «formais ou burguesas» em vigor nos regimes mais abertos: ridicularizam-nas, demonstram a sua inoperância, consideram-nas simples enganos para tolos ... mas assim que podem acabam com elas! Sabem que apesar da sua aparente fragilidade e da sua frequente ineficácia, o unanimismo totalitário não pode coexistir com as liberdades políticas elementares: se as tolerar, elas, a prazo, põem fim à autoridade de tanques e polícias.
Bom, é lógico que os Estados totalitários pretendam esmagar as liberdades individuais, uma vez que o próprio nome que os designa deriva da palavra «todo», e por isso esses Estados não aceitam a ideia de partilharem o poder com cada um dos seus cidadãos. Mas os inimigos da liberdade nem sempre estão no exterior, por vezes é dentro dos próprios indivíduos que os encontramos. Um psicanalista com ambições de sociólogo, Erich Fromm, escreveu há quase meio século um livro interessantíssimo cujo título é já significativo: O Medo à Liberdade. É esse o problema:'O cidadão assusta-se com a sua liberdade, com a variedade de opções e de tentações que se desdobram diante de si, com os erros que pode cometer e com as barbaridades que pode chegar a praticar... se quiser. Vê-se como que a boiar num mar de dúvidas local, sem pontos de referência fixos, obrigado a escolher pessoalmente os seus valores, submetido ao esforço de examinar por si próprio o que é preciso fazer, sem que a tradição, os deuses ou a sabedoria dos chefes possa aliviar grandemente a sua tarefa. Mas, acima de tudo, o cidadão tem medo da liberdade dos outros. O sistema das liberdades caracteriza-se pelo facto de uma pessoa nunca poder estar completamente segura quanto ao que vai acontecer. A liberdade dos outros, eu sinto-a como ameaça, porque preferiria que eles fossem perfeitamente previsíveis, que se parecessem obrigatoriamente comigo e jamais pudessem agir contra os meus interesses. Se os outros forem livres, é evidente que poderão comportar-se melhor ou pior. Não seria preferível que tivessem que ser bons à força? Não correrei demasiados riscos permitindo a liberdade deles? Muitas pessoas renunciariam de bom grado à sua própria liberdade contanto que os outros também não gozassem dela: assim as coisas seriam a todo o momento como devem ser - e mais nada. A minha liberdade é perigosa, porque posso utilizá-la mal e prejudicar-me a mim mesmo; quanto à dos outros nem vale a pena falar, uma vez que podem usá-la para me fazerem mal a mim. Não será melhor pôr fim a tantas incertezas? Não penses que são sempre os governantes que querem acabar com as liberdades ou castrá-las ao máximo: muitíssimas vezes são os cidadãos que solicitam a repressão, cansados de ser livres ou receosos da liberdade. Mas a verdade é que quando concedemos a um Estado a oportunidade de limitar as liberdades «para nosso bem», só raramente o Estado deixa de agarrar a ocasião. Certos políticos totalitários, como Adolf Hitler, chegaram ao poder por meio de eleições: como vês, isso significa que já aconteceu os cidadãos livres utilizarem a sua liberdade para acabarem com as liberdades e empregarem a maioria democrática para abolirem a democracia.
As liberdades públicas implicam responsabilidade: trata-se de uma noção a que já atribuímos a devida importância na Ética para Um Jovem, como espero que ainda tenhas presente. Ser responsável é ser-se capaz de responder pelo que se faz, assumindo-o como um acto próprio, e uma tal resposta tem pelo menos dois aspectos importantes. Primeiro, significa responder «fui eu» quando os outros querem saber quem levou a cabo as acções que foram a causa mais directa destes ou daqueles efeitos (maus, bons, ou maus e bons ao mesmo tempo); segundo, sermos capazes de dar as nossas razões quando nos perguntam porque fizemos estas ou aquelas acções relevantes. «Responder», não era preciso lembrar-to, é qualquer coisa que tem a ver com «falar», com entrar em comunicação articulada com os outros. Numa democracia, a verdade das acções com repercussão pública não pode ser exclusivamente detida pelo agente que as leva a cabo, mas abre-se a esse respeito um debate mais ou menos polémico com os restantes associados. Embora possamos acreditar na bondade das razões que nos movem, devemos dispor-nos a ouvir as dos outros sem nos fecharmos obstinadamente nas nossas, pois o contrário só poderá levar ou à tragédia ou à loucura. Dom Quixote considera-se a si próprio um cavaleiro andante, mas é óbvio que deveria ouvir de vez em quando a opinião dos que o rodeiam e medir o impacte social das suas discutíveis «façanhas». Se não o faz é porque está louco, ou seja, porque se tornou irresponsável. Contudo, assumirmos os nossos próprios actos e sermos capazes de os justificar perante os outros não implica que renunciemos sempre à nossa opinião para nos vergarmos perante o parecer da maioria. A pessoa responsável tem que estar também pronta a aceitar, depois de expor as suas razões sem ter conseguido convencer os restantes associados, o preço de reprovação ou marginalização da sua discordância. As palavras de Sócrates no diálogo platónico Críton, quando se nega a fugir da cadeia e prefere enfrentar a condenação à morte sem abdicar das suas ideias, constituem o símbolo clássico desta atitude de maturidade cívica suprema.
Os irresponsáveis podem ser de muitos tipos. Há aqueles que não reconhecem a autoria do que fizeram: «não fui eu, foram as circunstâncias». Nunca fizeram nada, mas foram empurrados pelo sistema político e económico vigente, pela propaganda, pelo exemplo dos outros pela educação que lhes foi dada ou pela falta dela, por uma infância infeliz, por uma infância demasiado mimada, pelas ordens dos superiores, pelo costume estabelecido, por uma paixão irresistível, pelo acaso, etc. E também pela ignorância: como não sabia que seriam estes os resultados da minha acção, não me considero responsável por eles. Nota que eu não digo que para compreendermos cabalmente as acções de uma pessoa não devamos ter em conta os seus antecedentes, as circunstâncias, etc. Mas uma coisa é termos isso em conta, outra é convertê-lo numa série de fatalidades que anulam qualquer possibilidade de um indivíduo dever responder pelos seus actos. Naturalmente, esta recusa por parte do indivíduo da condição de «sujeito», que o transforma em mero objecto arrastado pelas circunstâncias, só costuma verificar-se quando as consequências do acto que os outros lhe imputam são pouco agradáveis; se, pelo contrário, nos pusermos à procura do responsável por certas acções para lhe darmos um prémio ou uma medalha, o objecto da nossa busca proclamará «fui eu» com o maior dos orgulhos. É pouco frequente ouvirmos alguém dizer que não foi a sua pessoa mas apenas as circunstâncias ou o acaso que fizeram o acto heróico ou a genial invenção que os outros lhe atribuem...
Outra forma de irresponsabilidade é o fanatismo. O fanático recusa-se a qualquer tipo de explicações: prega a sua verdade sem condescender com mais argumentos. Como é ele quem incarna indubitavelmente o caminho recto, os que discutem a sua verdade só podem fazê-lo movidos por baixas paixões ou sujos interesses, cegos talvez por algum demónio que os não deixa ver a luz. O fanático também se não tem por responsável diante dos seus concidadãos, mas apenas perante uma instância superior e, à partida, inverificável (Deus, a História, o Povo ou qualquer outro termo maiusculado que tal): as cautelas e leis habituais não foram feitas para gente como ele, que tem uma missão transcendente a cumprir... Geralmente menos terrorista, mas em contrapartida muito mais extensa é a irresponsabilidade a que poderíamos chamar burocrática. É característica das instituições administrativas e governamentais em que nunca ninguém dá a cara por seja o que for que se faça ou não se faça: a coisa compete sempre a outro, o papel veio do gabinete lá de cima, isto muda-se naquilo também negociado, foram os superiores que decidiram (mas nunca se sabe que superiores) ou os subordinados que perceberam mal (é verdade que de vez em quando lá rola a cabeça de alguma insignificância, mas sempre para impedir que se procurem as verdadeiras responsabilidades mais alto). O estilo da irresponsabilidade burocrática caracteriza-se pelo facto de quase nunca ninguém se demitir aconteça o que acontecer: nem por causa da corrupção política, nem por causa da incompetência ministerial, nem por causa dos erros crassos que os cidadãos têm que pagar do seu bolso, nem por causa da ineficácia manifesta quando se trata de acabar com os males cuja remoção fora prometida. Como o governante se considera irresponsável, tenta que a trama das instituições o ajude a gozar de impunidade. Toda a denúncia de abusos, por fundamentada que seja, parece fazer parte de uma campanha malévola dos adversários políticos; quanto à indignação dos cidadãos comuns, expressa através dos meios de comunicação, aplica-se-lhe o velho princípio segundo o qual «os cães ladram e a caravana passa... ». Este modelo de irresponsabilidade governativa tem o seu complemento na irresponsabilidade dos que consideram não ter que responder por coisa nenhuma pois é o governo que deve resolver tudo. Eis uma vez mais a mentalidade totalitária, que torna o Estado e os seus representantes um absoluto fora do qual só existe impotência! Na sociedade democrática, nós, cidadãos, podemos e devemos reivindicar o nosso direito (pressupondo este último, em certa medida, a nossa obrigação) de intervir, de colaborar, de vigiar, de auxiliar quando isso nos pareça necessário. Há pessoas que em vez de lamentarem que os imigrantes não conheçam o nosso idioma se oferecem voluntariamente para o ensinar aos estrangeiros, sacrificando algumas horas de ócio; outras cooperam com o seu esforço ou o seu dinheiro com movimentos sociais (educativos, anti-racistas, assistenciais, etc.) ou com instituições não-governamentais - como a Amnistia Internacional, as associações de direitos humanos ou os Médicos sem Fonteiras - cuja acção é imprescindível para melhorarmos a actual sociedade civil. Quem nunca se sente solicitado, na sua consciência democrática, a fazer o que acredita que deve ser feito não fica quite com o seu dever por lamentar com eloquência que também «os governos» não o façam. Mas sem tirar sombra de importância à responsabilidade individual, é justo reconhecermos a nossa co-responsabilidade social no não-impedimento de situações próximas de nós que verosimilmente acabarão em crimes ou desastres.
Sejamos claros: os irresponsáveis são inimigos viscerais da liberdade, tenham ou não consciência disso. Todo aquele que não assume responsabilidades o que rejeita, no fundo, são as liberdades públicas, ininteligíveis se as desvinculamos da obrigação que cada um de nós tem de responder por si próprio. A liberdade é autocontrolo: ou andamos com um polícia, um médico, um psicólogo, um mestre-escola e até mesmo um padre ao lado para eles nos dizerem o que devemos fazer em cada caso que se nos apresente ou assumimos as nossas decisões, sendo capazes de dar a cara pelas consequências delas, para o bem como para o mal. Porque sermos livres implica que nos enganemos e até que nos prejudiquemos ao usar a liberdade: se nunca nos pudesse acontecer nada de mau ou de desagradável pelo facto de sermos livres... não o seríamos. Bem vistas as coisas, as Luzes políticas que, a meados do século XVIII, deram origem à democracia moderna pressupõem - como no seu tempo indicava já o velho Immanuel Kant - que nós, seres humanos, saímos da menoridade política. Se somos adultos podemos organizar-nos como iguais perante a lei e ser livres; caso contrário, precisamos de um Super-Paizinho que nos defenda de nós próprios, quer dizer, que restrinja, oriente e administre a nossa capacidade de agirmos livremente. É evidente que o lugar de Super-Paizinho tem um candidato que se apresenta voluntariamente e conta com todas as vazas para a conquista do título: já deves ter adivinhado que estou a referir-me ao Estado. A mania burocrática de transformar o Estado em nosso pai em vez de fazermos dele o nosso conselho de administração (mania sustentada por todos os que olham para o Estado de maneira timorata, mimada e infantil, em vez de adulta e participativa) chama-se em termos correntes paternalismo. E tem um sucesso que nem imaginas!
Há dois tipos de irresponsáveis infantilóides: os que têm medo dos outros e os que têm medo de si próprios. Nos dois casos, a consequência final é a mesma: quantas mais proibições, mais seguros e contentes. Como os irresponsáveis de que estamos a falar consideram que o Estado é o seu Grande Pai, rezam-lhe à sua maneira pedindo: «não nos deixes cair em tentação». Porque todos os irresponsáveis, em vez de acreditarem na liberdade (que é uma coisa bonita mas muito comprometida), acreditam no mito da tentação irresistível. Quer dizer, acreditam que há certas imagens, ou palavras, ou substâncias, ou conspirações, ou seja lá o que for, que nos seduzem de modo tão automático e envolvente que frente a elas não há defesa que se aguente pois o seu efeito é aniquilar em nós qualquer capacidade de decisão. Vamos lá, como diria o outro: um homem não é de pau ... Assim, a única salvação é aparecer o paizinho Estado para proibir a tentação: quando deixa de haver tentação, deixa também de haver perigo, pensam os pobres tolos. Podes crer que são espíritos infantis os que assim raciocinam.
Savater, F. (1993). Política para um Jovem. Lisboa: Editorial Presença.